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OPINIÃO |Nacionalidade: em busca de uma inconstitucionalidade perdida!, pelo Prof. Jorge Pereira da Silva

Quinta-feira, Julho 10, 2025 - 12:20
Publicação
Expresso Online

É a própria Constituição que prevê, no nº 4 do artigo 26º, o instituto da perda da nacionalidade portuguesa - A opinião de um especialista sobre um dos temas que marca a atualidade

Podemos imaginar um mundo sem fronteiras, em que todas as pessoas podem circular livremente em busca de uma vida melhor, escolher o local de residência e aí participar nas decisões mais importantes para o destino da comunidade.

Press - Nacionalidade: em busca de uma inconstitucionalidade perdida!

Não é esse, porém, o mundo em que vivemos. Segundo o Direito Internacional – cujo declínio hoje todos lamentamos –, os Estados gozam da prerrogativa soberana de definir quem são os seus cidadãos. Desenhar a linha que separa aqueles que integram a comunidade nacional – e são titulares de todos os direitos políticos – e os estrangeiros, que o Estado pode (ou não) autorizar a entrar no seu território.

Os Estados tomam essa tarefa muito a sério, certificando-se de que só podem aceder à nacionalidade pessoas que têm com a comunidade política uma ligação efetiva e genuína. Fazem-no por duas vias diferentes. 1) No momento do nascimento, as conexões utilizadas são a ascendência e o território, com diversas combinações. 2) Mais tarde na vida das pessoas, as conexões dominantes são a filiação, a adoção, o casamento e a residência. Neste último caso, o processo denomina-se “naturalização”. Por regra, inclui a realização de testes, sobretudo sobre língua e cultura, destinados a aferir o nível de integração social do requerente.

A proposta do Governo trabalha nestes dois planos, procurando corrigir óbvias distorções da Lei da Nacionalidade ainda em vigor, introduzidas em 2018 e 2020.

Primeiro, pretende garantir que a nacionalidade portuguesa não é automaticamente atribuída a todos aqueles que nascem em território português, ainda que os respetivos progenitores tenham acabado de chegar ao país ou até que aqui se encontrem em situação irregular. O Governo exige 3 anos de residência legal de um dos progenitores. Com a mobilidade que caracteriza o mundo contemporâneo, o local de nascimento é muitas vezes puramente acidental.

Segundo, em matéria de naturalização, são quatro as alterações principais: A) Encerrar o procedimento excecional de reparação histórica destinado aos judeus sefarditas – marcado, aliás, por sérias fraudes. B) Alargar o prazo de residência em território nacional, dos atuais 5 anos, para 7 ou 10, consoante o requerente seja ou não cidadão lusófono. É certo que 10 é o dobro de 5, mas foi esse o prazo que vigorou sem contestação até 2006. C) Alargar o conteúdo do teste de acesso, juntando ao domínio da língua o conhecimento da cultura portuguesa e dos direitos e deveres associados à cidadania. D) Garantir que apenas o tempo de residência legal em solo nacional é contabilizado para efeito de aquisição da cidadania, eliminando as vias paralelas – mais uma vez, criadas em 2018 e 2020 – de acesso sem prévio título válido do requerente.

Contudo, nada disto parece interessar. Porquê? Porque a proposta do Governo sobre perda da nacionalidade padece, supostamente, de uma inconstitucionalidade grave. Para que a proposta fique clara: a possibilidade de um juiz, ponderando as circunstâncias do caso concreto, aplicar uma sanção acessória de perda da nacionalidade portuguesa adquiria há menos de 10 anos, a uma pessoa que tem outra nacionalidade, na sequência da sua condenação em pena de prisão efetiva pela prática de um dos crimes graves elencados pela lei.

É muito curiosa a acusação de inconstitucionalidade. Desde logo, é a própria Constituição que prevê o instituto da perda da nacionalidade.

Basta ler o nº 4 do artigo 26º da Constituição: “a privação da cidadania (...) só pode efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamentos motivos políticos”. Ora, a lei geral e abstrata exigida pela Constituição é justamente a Lei da Nacionalidade. E, como o Código Penal não prevê crimes políticos, a condenação pela prática de um delito grave jamais pode ser considerada um “motivo político” ou, sequer, um motivo arbitrário. Além disso, a Convenção do Conselho da Europa sobre Nacionalidade, um dos mais importantes instrumentos internacionais que vincula Portugal neste domínio, prevê um amplo conjunto de fundamentos que permitem aos Estados decretar a perda da sua nacionalidade, desde que a pessoa em causa não se torne apátrida. Esses fundamentos vão da simples aquisição de outra nacionalidade – coisa que Portugal nunca fez nem vai passar a fazer –, a condutas prejudiciais para os interesses vitais do Estado, passando pelo desaparecimento superveniente de uma ligação efetiva ao país, por exemplo por residência prolongada no estrangeiro.

Neste tipo de controvérsias públicas, o derradeiro argumento a ser convocado é sempre o do princípio da igualdade. Foi assim formulado: introduz-se uma desigualdade entre cidadãos de origem e cidadãos naturalizados. Portanto: cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. Acontece que não se “introduz” coisa nenhuma, porque a distinção material entre as duas realidades em comparação está lá desde o início, desde o momento do nascimento (aliás, há pelo menos 16 anos, quando se atinge a idade da imputabilidade penal), em que as conexões determinantes para a atribuição da nacionalidade são a ascendência e o território – e não apenas a residência, que por ser uma conexão menos forte é sujeita a um duplo teste de continuidade e de integração comunitária.

De resto, se existisse mesmo um problema de desigualdade, poderia resolver-se alargando o regime agora proposto para a perda da nacionalidade também aos cidadãos de origem. Na verdade, as desigualdades não se superam apenas pelo alargamento do regime mais favorável. Tipicamente, ultrapassam-se também pelo alargamento dos regimes menos favoráveis. Mas, curiosamente, não há propostas nesse sentido. Ainda bem!

Jorge Pereira da Silva, Constitucionalista, professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica


 

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