Sem prejuízo da vasta panóplia de medidas anunciadas como amigas das famílias, para grande parte dos contribuintes, o Orçamento do Estado não se traduz em alterações efetivas.
Ao ler o Orçamento do Estado (“OE”) de cada ano, sinto um conflito interno. Por um lado, o contribuinte em mim mantém uma ténue esperança de abrir o documento e, finalmente, encontrar um cardápio de isenções e outros benefícios fiscais que permitam antecipar um ano “desafogado”. Como muitos contribuintes, continuo a acalentar a crença numa alteração de políticas públicas no dia anterior à apresentação da proposta do OE, quem sabe baseada num “cheque de Bruxelas”, que permita uma redução significativa dos nossos impostos… uma espécie de golo (orçamental) no último minuto.
Infelizmente, o fiscalista em mim sabe qual é a função dos impostos e, até, que os desagravamentos fiscais são geralmente compensados por agravamentos equivalentes no mesmo, ou noutros tributos.
Focando-me apenas no IRS, e procurando determinar se as normas fiscais constantes do OE permitirão aos contribuintes portugueses viver melhor em 2023, o antagonismo entre o contribuinte e o fiscalista volta a manifestar-se. Enquanto contribuinte, a análise do articulado é, de certa forma, enviesada. Isto porque, essencialmente, o articulado é lido em busca de normas que possam contribuir para um alívio da nossa própria carga fiscal.
Para esta análise, será relevante dizer que o OE prevê uma atualização generalizada/redução da taxa progressiva em 5,1% e uma redução da taxa marginal do 2.º escalão, de 23% para 21%; um aumento do mínimo de existência e uma alteração da sua fórmula de cálculo; um aumento da isenção para jovens empregados com níveis mínimos de escolaridade; um aumento das deduções à coleta para dependentes; reduções na retenção na fonte; e medidas que permitem a exclusão de tributação de alguns rendimentos obtidos com a venda da energia produzida para autoconsumo a partir de fontes de energia renovável.
Ainda neste contexto, o OE prevê, também, o enquadramento de alguns rendimentos de criptoativos como atividade comercial ou como mais-valia, podendo aplicar-se, neste último caso, uma taxa especial de 28%, sem prejuízo da isenção para operações relativas a criptoativos detidos há mais de 365 dias.
Enquanto fiscalista, contudo, considero que este tipo de análise, de natureza mais casuística, acaba por dificultar a determinação do verdadeiro impacto do OE na vida das famílias. Na realidade, importa não esquecer que quase metade dos agregados em Portugal, por força dos seus baixos rendimentos, não paga IRS. E para estes, as alterações acabam por não ter impacto. Ou seja, sem prejuízo da vasta panóplia de medidas que vão sendo anunciadas como amigas das famílias, para grande parte dos contribuintes, as alterações introduzidas pelo OE não se traduzem em alterações efetivas.
Assim, se um contribuinte e um fiscalista se encontrarem num bar para falar sobre o OE – o que parece de péssimo gosto –, o contribuinte poderá encontrar, aqui ou ali, algumas medidas de alívio fiscal. Contudo, o fiscalista salientará que o desagravamento, a existir, não é significativo ou efetivo, nem será generalizado e que, com grande probabilidade, o alívio sentido será eliminado pelo aumento da inflação.
Leonardo Marques dos Santos, Professor de Direito Fiscal e Direito Fiscal Internacional na Universidade Católica Portuguesa