Diante de nós temos uma oportunidade única para testar modelos novos para que, no final desta pandemia, as Universidades não só sobrevivam à crise, como também se reinventem, melhorando o serviço que prestam aos seus alunos e a toda a sociedade.
Em meados de março, as Universidades foram obrigadas a ensinar à distância de um dia para o outro. Em setembro de 2019 havia sido publicado o “Regime Jurídico do Ensino Superior à Distância”, mas ninguém podia adivinhar que esta seria a única modalidade de ensino viável para todas as Universidades do país, já no segundo semestre do ano letivo 2019/20. Depois da surpresa inicial, alunos e professores revelaram-se surpreendentemente capazes de se adaptar ao novo modelo, transpondo para o ensino online aquilo que já faziam presencialmente.
Parece, para já, provável que venham novos confinamentos; mesmo que assim não seja – ou para que assim não seja – será preciso adaptar as Universidades à necessária distância social, reduzindo turmas e redistribuindo espaços e tempos de permanência nas instalações, permitindo que os alunos que pertencem a grupos de risco, ou que habitam com pessoas nessas circunstâncias, possam permanecer mais resguardados. Acontece que, ao contrário do que vimos suceder com a tecnologia, os recursos humanos e físicos não crescem de um dia para o outro: não é possível dobrar ou triplicar o número de professores, não é possível dobrar ou triplicar os espaços. Em suma, há limites objetivos à possibilidade de retornar ao modelo totalmente presencial de ensino num contexto de continuidade da pandemia.
Por outro lado, os tempos exigem que não se fique amarrado aos modelos antigos, agora meramente replicados para um ambiente remoto, online. Se a necessidade aguça o engenho, o ensino universitário pode agarrar a oportunidade para inovar, para protagonizar uma mudança de paradigma na criação de conhecimento e nos modos de aprender e ensinar.
Neste contexto, ganha protagonismo o modelo de educação mista, que conjuga o ensino presencial e à distância (blended learning, ou B-learning).
No próximo ano, se as Universidades seguirem uma aproximação muito conservadora ao B-learning, este não passará – mais uma vez – de uma adaptação do modelo presencial a alguns momentos online, replicando o trabalho que já era feito em sala de aula, com os mesmos manuais, slides e exposições de sempre. Mas fazê-lo seria desperdiçar a oportunidade que esta conversão ao digital proporciona. Não tem de ser mais do mesmo.
Num modelo em que predominam aulas presenciais, o B-learning abre a porta tanto à produção de novos conteúdos digitais (artigos em open access, podcasts, fóruns de participação…) quanto ao estabelecimento de parcerias universitárias para a lecionação remota por docentes internacionais (compensando a menor capacidade de mobilidade). Além disso, pode favorecer também um contacto mais estreito com os professores, por meio da divisão de turmas, proporcionando esquemas rotativos de aulas online e presenciais a grupos mais pequenos, com horários menos rígidos, ou até mesmo permitindo a readaptação dos programas num esquema tailor-made, indo ao encontro das necessidades e dos ritmos de cada um (desenhando-os, por exemplo, como se de playlists se tratassem, com momentos presenciais e outros à distância).
Mesmo que tenhamos de aderir – por força das circunstâncias – a um modelo de predomínio de aulas online, o B-learning pode constituir uma boa oportunidade para as Universidades. Em primeiro lugar, porque permite chegar a um público mais vasto, com a disponibilização de alguns conteúdos e avaliações totalmente online, para quem não tem a disponibilidade para a vida universitária e necessita de se atualizar ou progredir na carreira. Em segundo lugar, porque obriga a uma revisitação dos programas lecionados, em busca de novos métodos, que promovam mais a autonomia e o desenvolvimento do pensamento crítico. O B-learning pode favorecer, por exemplo, a inversão do método de aprendizagem – deixando de fora das aulas tudo o que não é interativo –, estimulando leituras e aprendizagens autónomas por parte dos alunos, de forma orientada, com acesso a bibliografia e materiais disponibilizados online, deixando o contacto com o professor e os colegas para discussão de temas e debate científico. Pode potenciar ainda o desenvolvimento de projetos individuais ou de grupo, devidamente acompanhados e supervisionados pari passu pelo professor, podendo isso refletir-se num aumento do número de publicações científicas.
Todavia, não será possível mudar modelos sem um grande esforço de adaptação, sendo possível destacar, entre outros, três grandes desafios.
Antes de mais, é necessário proceder à formação dos professores, para o domínio dos meios técnicos e experimentação de novas formas de ensino, tendo em vista a revisitação de esquemas de aprendizagem sedimentados ao longo de décadas. O que não será feito sem dificuldade e sem trabalho adicional, pois implica o redesenho dos programas e de novas formas de interação com os alunos, bem como maior disponibilidade para atendimento.
O segundo desafio será a manutenção dos níveis de engagement dos alunos. A experiência de passagem para o online demonstra que, se é verdade que alguns alunos sabem tirar partido da visibilidade que a sua janela-vídeo lhes proporciona, mantendo o mesmo nível de participação que tinham nas aulas presenciais, também é certo que um grupo significativo se desmotiva sem o estímulo da presença física do professor. A redução de aulas presenciais impõe maior autonomia e autodisciplina por parte dos alunos, na medida em que supõe a realização de trabalho fora da aula, num ambiente que tende a favorecer a distração. A promoção de uma maior autonomia aos alunos é desafiante porque contraria o modelo de ensino pré-universitário em Portugal que, de um modo geral, tende a estimular pouco a curiosidade e a criatividade dos alunos. Estes chegam, em número significativo, à Faculdade habituados a reproduzir passivamente conteúdos que lhes foram transmitidos, a estudar sobre apontamentos em lugar de pesquisarem informação diretamente nas fontes, apresentando pouca ou nenhuma experiência de trabalho autónomo e capacidade de reflexão crítica.
Por fim – mas não menos importante – o terceiro desafio será descobrir o justo equilíbrio entre o online e o presencial, de forma a manter o contacto humano e social que acontece de modo privilegiado nas aulas presenciais, para que as Faculdades continuem a ser uma comunidade de pessoas e não se convertam em meras “prestadoras de serviços educativos”. Docentes e alunos universitários sabem que a sala de aula constitui o lugar privilegiado para a partilha de experiências e o debate de ideias que esteve na origem da criação do modelo universitário. Sabem também que as relações humanas – entre docentes e alunos e entre estes com os colegas – constituem parte integrante do desenvolvimento integral da pessoa.
Para que este modelo mais digital funcione será necessário apetrechar as Universidades de meios. Dir-se-ia, à primeira vista, que as primeiras necessidades são tecnológicas – salas equipadas para o séc. XXI, que permitam transmissão de aulas em direto; boas ligações de rede; plataformas digitais ágeis de apoio ao ensino, com instrumentos que permitam uma avaliação honesta e transparente. Isto não será, porventura, o mais difícil, pois a verdade é que, em maior ou menor grau, os meios tecnológicos já provaram ser suficientes e ter um grande potencial de adaptação e inovação. Qualquer aluno universitário dispõe hoje de computador ou telemóvel com capacidade para aceder remotamente a uma aula, descarregar a app da ferramenta de e-learning e guardar vários tipos de ficheiros.
Mas isto não basta. A transição está também dependente do reconhecimento de uma maior autonomia às Universidades para a adaptação dos seus currículos e programas. Não será possível impor, nestes tempos excecionais, os constrangimentos aplicáveis numa situação de normalidade, como as constantes obrigações de comunicação de alterações curriculares e de tempos letivos, pois estas tornam os programas rígidos e são incompatíveis com o dinamismo próprio da vida universitária, mais necessária ainda nesta forçada conversão para o digital.
Diante de nós temos uma oportunidade única para testar modelos novos para que, no final desta pandemia, as Universidades não só sobrevivam à crise, como também se reinventem, melhorando o serviço que prestam aos seus alunos e a toda a sociedade.
Maria d’Oliveira Martins e Inês Quadros são professoras de Direito da Universidade Católica Portuguesa