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"Classificado": Estado de Direito ou Razão de Estado?

Tuesday, October 3, 2023 - 16:22
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EXPRESSO

Cada vez que se põe o carimbo “classificado” num documento oficial abre-se uma brecha no princípio da transparência e restringem-se direitos fundamentais dos cidadãos

"Classificado": Estado de Direito ou Razão de Estado? - JPS

Costuma dizer-se que a luz do sol é o melhor desinfetante.

Por isso, a transparência é um princípio basilar da democracia. Este regime não é apenas o governo do povo, pelo povo e para o povo. É também – e cada vez mais – o governo à vista do povo.

Todas as ditaduras, pelo contrário, têm horror à luz do dia e preferem atuar na penumbra, em absoluto segredo. Desde há muito que se sabe que a escuridão é propícia a toda a espécie de abusos. Segundo a Bíblia, Jesus Cristo foi preso no Monte das Oliveiras pela calada da noite. Ainda hoje a Constituição portuguesa proíbe a realização de buscas domiciliárias durante a noite.

Qualquer Estado de Direito, digno dessa designação, concretiza o princípio da transparência num conjunto de direitos dos cidadãos e em múltiplas regras de funcionamento dos poderes públicos. Os direitos dos cidadãos à informação, à notificação e à fundamentação das decisões que os afetam, a aceder aos arquivos e registos administrativos são apenas alguns exemplos. A publicação oficial dos mais relevantes atos do poder político, a abertura ao público das reuniões de muitos órgãos governativos e as obrigações declarativas dos titulares de cargos públicos são igualmente corolários objetivos do princípio da transparência.

Quer isto dizer que um Estado democrático não pode guardar segredos relativamente aos seus cidadãos? Claro que pode, mas apenas excecionalmente.

Em Portugal, a Assembleia da República aprovou em 1994 uma lei que disciplina o segredo de Estado. Apesar de ao tempo já terem passado 20 anos sobre a queda do regime de Salazar e Caetano, o debate político foi bastante intenso e a regulamentação consagrada muito restritiva. Por isso, segundo consta, apenas oito matérias estão hoje classificadas como segredo de Estado.

Em contrapartida, nos últimos tempos, os portugueses têm sido recorrentemente confrontados com notícias que dão conta de que a matéria “x” ou o documento “y” foram classificados e que, portanto, o seu conteúdo não pode ser conhecido.

Foi o que sucedeu com o relatório de uma auditoria realizada ao Hospital Militar de Belém e, bem assim, com o plano de reestruturação da TAP e vários outros documentos enviados à respetiva Comissão Parlamentar de Inquérito. Classificado terá sido até, num primeiro momento, o famigerado questionário destinado a averiguar se os candidatos a ministros e secretários de Estado têm ou não esqueletos no armário, capazes de embaraçar o primeiro-ministro mais adiante.

É difícil não ver aqui um padrão de comportamento muito pouco saudável.

Na mesma linha, aliás, veio recentemente a público que a Huawei foi considerada uma empresa de “alto risco” e, em consequência, excluída do fornecimento de equipamentos técnicos às operadoras de telecomunicações que estão a montar a rede 5G. A decisão foi tomada por uma recém-criada Comissão de Avaliação de Segurança, que de imediato a classificou como “reservada”. Por esse motivo, num processo que tem algo de kafkiano, a decisão não foi devidamente comunicada à própria empresa destinatária.

Mas como é isto possível se todas estas matérias não são (nem reuniriam as condições para ser) segredo de Estado?

A razão é simples: o Governo gere um sistema de classificação de documentos – num plano supostamente inferior ao do segredo de Estado – que se baseia, não numa lei formal, mas numa resolução do Conselho de Ministros datada de 1988, era primeiro-ministro o Prof. Cavaco Silva. Além de distribuir graciosamente o poder de classificar documentos por uma miríade de entidades, esta vetusta resolução não fixa parâmetros rigorosos para a seleção daquilo que pode ou deve ser objeto de classificação e com que grau: secreto, confidencial ou reservado.

Nada garante, portanto, que as decisões de classificação não se destinam apenas a esconder informação comprometedora para o Governo ou, pior ainda, a ocultar decisões políticas determinadas pela velha razão de Estado. Nada garante, de facto, porque não existe nenhum órgão independente que controle ex ante ou ex post essas decisões de classificação.

É um enigma que esta resolução do Conselho de Ministros de 1988 tenha subsistido até hoje, tão flagrante é a sua inconstitucionalidade. Cada vez que se carimba um documento com «classificado» – e se cria mais um segredo – abre-se uma pequena brecha no princípio da transparência. Mas, sobretudo, restringem-se direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o direito dos cidadãos à informação.

Até quando?

Jorge Pereira da Silva, Professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica.

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