Novos impostos digitais devem avançar mesmo “com furos e buracos” para que a Europa não seja ultrapassada pela realidade, considera o antigo governante. Em Portugal, acredita que o Governo tomou a decisão certa perante a pandemia, mas lembra que “endividamento são impostos a prazo”.
Sérgio Vasques, especialista em Direito Fiscal, foi o “anfitrião” dos seminários online que a Faculdade de Direito da Universidade Católica promoveu, em junho e julho, sobre os temas quentes da agenda fiscal europeia – o imposto sobre transações financeiras, a revisão da diretiva sobre tributação energética e o imposto sobre serviços digitais. O docente admite que o “dossier da energia é aquele que maior impacto vai ter em Portugal”, nos bolsos das famílias e na tesouraria das empresas, mas é nas transações financeiras, e principalmente nos serviços digitais, que as expectativas estão concentradas. A entrevista foi também pretexto para tentar saber o que faria este antigo governante, de um governo socialista, perante a crise atual: “No que toca à escolha dos impostos a agravar, já percebemos que não há grandes demarcações ideológicas entre esquerda e direita. É o que estiver mais a jeito…”
Porque é tão difícil fazer legislação fiscal e, mais ainda, harmonizar as leis fiscais nos países europeus – algo de que já pouco se fala, porque a unanimidade tornou-se quase impossível de conseguir? A regra da unanimidade é a grande culpada. À medida que a União Europeia (UE) se foi alargando, ainda se conseguiu arrumar a casa e harmonizar alguns dos principais impostos, como o IVA, mas, a partir daí, ficou tudo tão complicado que a Comissão Europeia decidiu propor um road map para deixar cair progressivamente a regra da unanimidade e adotar a da maioria qualificada, começando pela tributação energética e ambiental. Mas há também uma corrente no sentido inverso. Nos últimos dez anos, assistimos a fenómenos à escala internacional que obrigam os Estados-membros a uma ação comum. No caso da tributação das indústrias digitais [Digital Services Tax], a fuga de receita é tão grande que todos nos sentimos pressionados a fazer alguma coisa. Vamos ver se há ou não um acordo, mas tudo aponta nesse sentido.
Quando há acordo, as exceções, isenções e reduções de taxas de imposto são imensas. Não desvirtuam a intenção inicial? Cada caso é um caso. Na tributação energética [Energy Taxation Directive], estamos a falar de algo que tem impacto na economia, tanto na grande indústria como nos consumidores, em que só se tem conseguido avançar com imensas concessões. Na tributação dos serviços financeiros [Financial Transaction Tax] ou das indústrias digitais, há espaço para um regime mais limpo, com menos exceções. Por vezes, acordar um texto com isenções e exceções, com furos e buracos, é um passo para os Estados-membros construírem uma relação com os dossiers. Sucedeu com o IVA e espera-se que aconteça com a tributação energética. Ou encontramos um mínimo denominador comum para aprovar leis novas, ou somos ultrapassados pela realidade, como no caso das indústrias digitais.
Taxar transações financeiras é uma ideia antiga. É o momento certo para avançar, quando os efeitos da pandemia podem exigir novas medidas redistributivas? O contexto mudou. A ideia de regular mercados, recuperando a velha noção de um imposto sobre as operações financeiras, vem no seguimento de uma crise financeira [a diretiva foi proposta em 2011], porque todos percebemos que determinadas operações especulativas tinham custos efetivos extraordinários. Mesmo antes de 2008, vários países aplicaram impostos para regularem os mercados financeiros. Na América Latina era muito comum.
Era visto como uma espécie de castigo? Sim, destinava-se a desmotivar comportamentos de risco nos mercados financeiros. Mas havia também uma preocupação redistributiva, de fazer com que o setor contribuísse para o equilíbrio das contas públicas. Na altura, ensaiaram-se coisas como as contribuições sobre a banca. Hoje, a crise surge por razões diferentes. Não estamos à beira de uma crise financeira. E, no que toca à componente redistributiva, os dados de diferentes países [que aplicaram as suas próprias FTT] indicam que esse imposto teve uma receita diminuta. No caso de Itália, estamos a falar de 500 milhões de euros, o que é uma receita muito modesta – e Itália tributa os derivados, o que a Comissão Europeia não faz. Se for para acorrer à atual crise, a ideia de aplicar esta taxa é altamente simbólica. Este imposto é essencialmente regulatório, e não tanto um instrumento de redistribuição.
Agravar os impostos poderia ter um efeito devastador sobre a economia. Se mais adiante será inevitável, o futuro o dirá”
Neste contexto de pandemia, não faria mais sentido discutir impostos cujas receitas revertessem para o Serviço Nacional de Saúde? Não é por acaso que se voltou a falar em taxar as fortunas dos ricos… A despesa pública resultante desta crise vai ser financiada pelos grandes impostos. Uma medida como a FTT será sempre marginal, do mesmo modo que um eventual imposto sobre as grandes fortunas pessoais. No âmbito do pacote de recuperação económica, a UE sugeriu um imposto – uma espécie de derrama – sobre as grandes empresas que atuam no mercado europeu. A ideia de ir atrás das grandes empresas foi posta pela primeira vez em cima da mesa. Isto é novo, à escala europeia, embora não seja novidade em Portugal, onde já usamos as derramas estaduais para tributar mais as empresas de maior dimensão.
E porquê o foco nas grandes empresas? As grandes fortunas individuais são extraordinariamente móveis. Por vezes, basta passar uma fronteira. Já as grandes empresas, à custa de esquemas de planeamento fiscal, conseguem deslocar os lucros para fora da UE, mas não se podem dar ao luxo de não estar no mercado europeu. O que a comissão está a tentar fazer é transformar isso numa vantagem. A Europa mostra vontade de avançar já com o imposto sobre serviços digitais... O cenário atual é, e não é, encorajador. Por um lado, há um esforço da OCDE para adotar uma proposta única, à escala internacional, até ao final do ano. Esse trabalho aparentemente bateu contra uma parede, com o afastamento dos EUA. Daí resultou a decisão europeia de avançar ao nível da UE, apresentando uma proposta comum. Mas, por força da inércia da OCDE, e da própria UE, vários países europeus foram introduzindo os seus próprios impostos sobre serviços digitais. Por isso, chegámos ao ponto de ser melhor ter uma proposta comum, ainda que ligeira, do que uma miríade de impostos em vigor nos diferentes Estados- -membros. A capacidade da UE em impor a sua vontade é muito maior do que a de cada Estado isoladamente.
A pandemia reforça a urgência do Green Deal europeu e pode acelerar a revisão da diretiva sobre tributação energética? Diferentemente do que acontece com a tributação dos serviços digitais ou das transações financeiras, que têm um alcance muito limitado em Portugal, o dossier da energia tem grande impacto nos bolsos das nossas famílias e empresas: no setor elétrico, nos impostos sobre os combustíveis, no setor da aviação e no seu impacto sobre o turismo, etc. A discussão da diretiva ainda está no início, mas a ideia da comissão é a de fazer da fiscalidade verde um instrumento de primeira linha. Mais vale isso do que agravar o IRS.
Em Portugal, a despesa pública está a aumentar, mas o orçamento suplementar não traz aumento de impostos... Não temos aumento de impostos, mas temos endividamento. E o endividamento são impostos a prazo. Neste momento, agravar os impostos poderia ter um efeito devastador sobre a economia. Foi a melhor solução. Se, mais adiante, será inevitável agravar impostos, o futuro o dirá. Depende da duração da crise e do efeito sobre a economia. Ninguém sabe que política fiscal poderá praticar em 2021. No outono, teremos mais informação para preparar o orçamento, mas não vejo grande capacidade para desagravar o IVA em 3 ou 4 pontos percentuais, por exemplo.
Mas estamos a discutir a redução do IVA na eletricidade… Sim, mas é uma coisa muito pontual. No caso da eletricidade, sabemos porque a taxa aumentou. Uma coisa é desagravar determinados escalões de consumo, outra coisa é repor a taxa reduzida, tal como existia há alguns anos.
Face à crise, o Governo anunciou uma nova contribuição sobre a banca… Muitos Estados europeus introduziram impostos ou contribuições especiais sobre o setor bancário, mas entretanto foi criado um fundo de resolução [bancária] à escala europeia, com contribuições próprias. Em Portugal, o setor suporta, além do IRC, três – e de futuro quatro – contribuições. Não tem lógica. Onde cabe uma contribuição não cabem necessariamente quatro. Há setores que têm o seu IRC próprio, e que depois pagam umas contribuições sobre os ativos, no caso da energia, ou sobre os passivos, no caso do setor financeiro, e por aí adiante. Este labirinto de contribuições não é útil para ninguém, até porque os custos são repassados para os consumidores.
Como antigo governante, admite que isso dá jeito? Com certeza que dá! E, muitas vezes, há razões circunstanciais que o justificam. Quando foi criada a contribuição sobre o setor bancário em 2010, não tenho dúvidas de que fazia todo o sentido, cá como no resto da Europa. Mas onde cabe uma não cabem quatro! E há setores onde as razões para a introdução de contribuições deste tipo, além da simples arrecadação de receitas, são nenhumas.
É só porque há dinheiro? É porque há dinheiro, porque é fácil tributar e porque, muitas vezes, estamos perante empresas que estão cativas da decisão pública. Não têm hipótese senão pagar.
Quando houver aumento de impostos, os governos vão optar pelos impostos diretos ou indiretos? Sobre as famílias ou sobre as empresas? Não sei se vale a pena especular. A economia pode recuperar de forma a que a elasticidade de impostos como o IVA seja suficiente para pôr as contas em ordem. No que toca à escolha dos impostos a agravar, já percebemos que não há grandes demarcações ideológicas entre esquerda e direita. É o que estiver mais a jeito…
B.I.
> N O M E Sérgio Vasques
> VIDA Doutorado em Direito Fiscal pela Universidade de Lisboa
> C A R R E I R A É professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Católica É consultor do Banco Mundial para a área da reforma fiscal Foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais durante o segundo governo de José Sócrates, entre 2009 e 2011