A Constituição só permite a suspensão de direitos, liberdades e garantias por uma situação de calamidade pública através da declaração do estado de emergência.
Confirma-se. António Costa já tinha anunciado: “Confinamento é para manter diga o que disser a Constituição”... Sem surpresa, o Governo substituiu o estado de emergência pelo estado de calamidade, por períodos de 15 dias renováveis. Mas, no essencial, a situação não muda muito.
É certo que, a partir de dia 4 de maio, o dever de recolhimento domiciliário passa a ser um mero dever cívico. Trata-se, pois, de um dever semelhante ao dever cívico de votar. Não pode ser imposto coercivamente. Por isso, as forças de segurança apenas podem sensibilizar a comunidade quanto ao seu cumprimento e recomendar o recolhimento domiciliário.
A verdade, porém, é que, mesmo em matéria de circulação de pessoas, no domingo, dia 3 de maio, já após o fim do estado de emergência, e depois de ter admitido a participação nas “celebrações oficiais do Dia do Trabalhador” (promovidas pela CGTP), o Governo considerou que, ao abrigo do estado de calamidade, podia impor a todos os cidadãos a proibição de circulação para fora do concelho de residência habitual.
Sobretudo, no estado de calamidade, mantêm-se importantes suspensões a direitos, liberdades e garantias fundamentais. Concretamente, o Governo proíbe concentrações de pessoas em espaços públicos superiores a 10 pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar, e não permite a realização de quaisquer celebrações ou eventos, mesmo de cariz religioso, que impliquem uma aglomeração de pessoas em número superior a 10 pessoas. Significa isto que direitos tão fundamentais como o direito de reunião, o direito de manifestação e a liberdade religiosa na sua manifestação coletiva continuam suspensos por mera resolução do Conselho de Ministros. Tudo isto sem que os visados - a começar pela Igreja Católica - se insurjam.
Ninguém contesta obviamente a necessidade de continuar a adotar medidas restritivas para mitigar o contágio e a propagação do COVID-19. Acontece, porém, que a Constituição só permite a suspensão de direitos, liberdades e garantias por uma situação de calamidade pública através da declaração do estado de emergência (cujo conteúdo pode e deve ser menos restritivo se as circunstâncias da calamidade o permitirem).
Os menos avisados dirão que lá estão os juristas a “inventar problemas”...
Só que os juristas sabem que a suspensão de direitos fundamentais num Estado de Direito deve obedecer a um procedimento especialmente garantístico e não ficar nas mãos de um qualquer Governo. Doutra forma, abre-se um perigoso precedente. E mal seria que, no final, Eça de Queiroz tivesse razão e que, no nosso Estado de Direito, a Constituição estivesse sempre aberta sobre a mesa, mas apenas para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento…