É urgente que PS e PSD cheguem a acordo para que da Constituição passem a constar os deveres públicos de respeito incondicional pelos direitos fundamentais dos mais pobres e de estabelecimento progressivo da erradicação da pobreza.
Num tempo em que tanto se fala sobre pobreza, com o número de sem-abrigo a aumentar, é urgente que PS e PSD cheguem a acordo para que da Constituição passem a constar os deveres públicos de respeito incondicional pelos direitos fundamentais dos mais pobres e de estabelecimento progressivo da erradicação da pobreza. O PS prevê já, no seu projeto de revisão constitucional, o acrescento da erradicação da pobreza à alínea d) do artigo 9.º (embora sem prever o incondicional reconhecimento constitucional dos direitos dos mais pobres que proponho também).
A consagração desta nova tarefa constitucional deveria ser assumida como um compromisso de assunção plena de que o cuidado para com os mais pobres corresponde a um dever jurídico do Estado. Tornando claro aquilo que já resulta do imperativo da dignidade humana constante do artigo 1.º da Constituição: a pobreza é um assunto público que não deve ser entregue à caridade voluntária.
A caridade voluntária – que inevitavelmente vai avançando para suprir as insuficiências da luta contra a pobreza – não pode ser a resposta para o problema da pobreza. Esta não cumpre o objetivo de proteção dos mais pobres, pois está sujeita às regras da benevolência e não da Justiça: dá na medida daquilo que quer; dá quando entende; decide arbitrariamente a que necessidades atende; decide arbitrariamente quem ajuda; e coloca quem pede numa situação de subordinação e vulnerabilidade.
A dignidade humana supõe que as pessoas (todas, sem exceção,) se encontrem em condições de, a cada momento, assumirem as suas decisões de forma autónoma, livre e de acordo com a razão. Ou seja, de assumirem plenamente a sua humanidade. A dignidade humana não é, pois, compatível com a indiferença pública perante a insatisfação das necessidades básicas das pessoas, uma vez que por efeito da privação dos bens básicos para sobreviver, estas se veem submetidas a uma condição sub-humana. Condição essa que resulta da exposição, no extremo, a situações de perigo de vida (em que se joga a própria existência) ou, então, a situações de sujeição a violência, opressão, repressão ou exploração, as quais são a negação de um tratamento das pessoas de acordo com o respeito pela sua humanidade.
A assunção desta nova tarefa constitucional que proponho não corresponde, propriamente, ao reconhecimento de um direito fundamental a não ser pobre, porque o conceito relativo de pobreza que assumimos na União Europeia – são considerados pobres todos os que se encontram abaixo da linha dos 60% da mediana do rendimento – sempre levará a que exista pobreza em termos comparativos. Ela visa, isso sim, o reconhecimento de uma especial necessidade de proteção pública dos direitos dos mais pobres, na sua dupla dimensão negativa e positiva.
Na dimensão negativa, obrigando o Estado ao respeito da esfera de liberdade dos mais pobres, em circunstâncias de igual consideração e respeito em relação àquilo que faz aos demais cidadãos. Dimensão que se reflete primordialmente no respeito integral da sua liberdade de expressão, do seu direito de circulação e do seu direito de presença no espaço público. Dimensões importantíssimas, sobretudo num tempo como aquele em que vivemos em que a maior parte dos países europeus (re)assume – numa reedição das antigas “leis de vagabundagem” – medidas criminais para impedir a mendicância. À luz desta dimensão negativa, sairia reforçada a exigência de um tratamento público respeitador da igualdade e dignidade de todos, impedindo as autoridades de tomar medidas no sentido de arbitrariamente “enxotar” ou mesmo deter os pedintes e sem-abrigo, para não incomodarem as demais pessoas com a sua presença, pedidos ou histórias de vida.
Na dimensão positiva, o reconhecimento de uma especial proteção dos direitos dos mais pobres vincularia o Estado à promoção de medidas ativas que concretizassem os direitos dos mesmos no acesso aos bens básicos de que carecem para viver. Nomeadamente, reforçando (e obrigando a repensar) o dever público de concessão de ajuda de emergência, quando isso se torne necessário para assegurar a sobrevivência das pessoas ou o dever de intervenção junto daqueles que se encontrem em situação de extrema vulnerabilidade (nomeadamente, sem-abrigo e pessoas à saída da prisão ou de estabelecimentos de saúde, quando se encontrem em situação de exclusão social).
No que toca ao estabelecimento de um dever de erradicação da pobreza, seria importante que ele pudesse ficar sujeito ao regime das normas constitucionais de realização progressiva. Para tanto, bastava que a tarefa do Estado fosse concebida como de “erradicação progressiva da pobreza”, como sucede com os artigos 74.º, alínea e) e 81.º, alíneas d) e e) da nossa Constituição. Essa abordagem teria a vantagem de colocar a realização das tarefas de erradicação da pobreza num caminho de desenvolvimento progressivo de políticas públicas, impedindo o retorno nos passos já dados com esse objetivo.
A formulação de deveres públicos de respeito pelos direitos dos mais pobres e de erradicação da pobreza deveria equivaler, no fundo, a um pacto de regime assente na fórmula de minimização do sofrimento, tal como sugerida por Karl Popper (em A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos), imprimindo, a partir da Lei Fundamental, uma urgência na prestação da ajuda aos que mais dela carecem, na tentativa de prevenir o sofrimento e de chamar todos à Humanidade.
Maria d'Oliveira Martins
Professora de Finanças Públicas e Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa