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O braço de ferro do Tribunal Constitucional alemão

Friday, May 15, 2020 - 10:39
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O Jornal Económico

A decisão do Tribunal pode pôr em causa um Programa que contribui indiscutivelmente para o funcionamento e a estabilidade da moeda única.

Press  - O braço de ferro do Tribunal Constitucional alemão_Inês Quadros

Na passada semana foi publicado um acórdão do Tribunal Constitucional Alemão referente ao Programa de Compra de Ativos do Setor Público em mercados secundários (PSPP), anunciado em 2015 pelo Banco Central Europeu (BCE). O Tribunal ordenou aos órgãos alemães que não implementem o Programa a menos que, num curto prazo, sejam prestadas determinadas garantias pelo BCE. A decisão tem obviamente variadas implicações, mas gostaria de me deter sobre dois pontos:

1. A decisão do Tribunal de Karlsruhe não surpreende, para quem acompanha a história da sua relação com o Tribunal de Justiça da União. Desde que se tornou claro que o projeto europeu alterava profundamente as ordens jurídicas nacionais e o próprio conceito de soberania, aquele Tribunal Constitucional assumiu o papel de guardião da ordem constitucional alemã.

Fê-lo nas décadas de 70 e 80, reservando para si o papel de defensor último dos direitos fundamentais; fê-lo, igualmente, a pretexto da ratificação do Tratado de Maastricht, notando que não abdicaria do controlo do respeito, pelas instituições da União, dos limites ao exercício da sua competência (o designado controlo da atuação ultra vires); e adota postura semelhante agora, a respeito do PSPP.

Há que reconhecer que, em todos estes casos, a posição do Tribunal Constitucional Alemão é equilibrada: ele reconhece a importância da integração europeia e admite uma clara tolerância da Constituição alemã diante desse projeto – o que se concretiza, por exemplo, no facto de dar prioridade às garantias institucionais e procedimentais próprias do Direito da União, designadamente à posição preferencial do Tribunal da União para avaliar a legalidade da atuação das instituições, mesmo admitindo que daí resultem soluções diferentes das que ele próprio teria tomado.

Aliás, antes de tomar a decisão da passada semana, o Tribunal Constitucional havia submetido a mesma questão ao tribunal europeu, dando-lhe oportunidade de se pronunciar sobre a matéria que tinha em mãos.

O que o Tribunal Constitucional não aceita é ser arredado em definitivo da vigilância última sobre a atuação dos órgãos da União, quando estes, na sua perspetiva, extravasam a competência inscrita nos Tratados. Enquanto controlo excecional e de fim de linha, para garantir o Estado de Direito democrático, a postura não é, em si, censurável – afinal, quem mais vigiaria os próprios vigilantes?

2. É evidente que o pomo da discórdia está em saber se, efetivamente, uma dada atuação das instituições está autorizada pelo Tratado – e, como qualquer estudante de Direito gosta de glosar, aqui “a doutrina diverge”.

Desta feita, o que estava em causa era a decisão do BCE de 2015 que aprovou o PSPP. Na perspetiva do Tribunal da UE, tal decisão, para a qual admitiu ao BCE uma “ampla margem de apreciação”, tinha sido adotada no quadro da política monetária da União, que é competência exclusiva desta, não alterando essa qualificação o facto de o Programa produzir efeitos indiretos, ainda que previsíveis, na economia dos Estados Membros.

Diferentemente, o Tribunal alemão considerou que os efeitos significativos do Programa no domínio fiscal, no setor bancário e no comportamento dos indivíduos, deveriam levar a qualificar a medida no âmbito da política económica, que é apenas partilhada com os Estados. Assim, na perspetiva do Tribunal, a atuação do BCE foi desproporcionada; como o Tribunal de Justiça não a sujeitou a escrutínio, fez-se letra morta do princípio da repartição de competências entre a União e os Estados.

Neste ponto o juízo sobre a decisão é bastante mais complexo – se é certo que o escrutínio e a exigência de fundamentação das decisões europeias garantem sempre maior accountability, a verdade é que as duas políticas da União – monetária e económica – não são verdadeiramente cindíveis; a decisão do Tribunal pode pôr em causa um Programa que contribui indiscutivelmente para o funcionamento e a estabilidade da moeda única.

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