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OPINIÃO | Da Polónia com amor...

Monday, October 18, 2021 - 19:26
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Expresso Online

No passado dia 7, o Tribunal Constitucional polaco proferiu um acórdão onde afirmou que a Constituição polaca prevalece sobre os Tratados europeus. A decisão recebeu uma reação inflamada por parte da Comissão Europeia e alguma opinião pública abriu de imediato as portas para o agora já designado “Polexit”. A professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica Patrícia Fragoso Martins afirma neste artigo de opinião que o acórdão é, todavia, menos importante por aquilo que é, do que por aquilo que revela.

Deve sublinhar-se, em primeiro lugar, que não é a primeira vez que um tribunal nacional – nem mesmo um Tribunal Constitucional, e nem mesmo o Tribunal Constitucional polaco – resiste ao princípio da primazia do direito da União. Ao contrário do que tem sido sugerido, este princípio está envolto em controvérsia jurídica e política desde que foi primeiramente afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em 1964. Desengane-se, pois, quem pensa a ideia de que o direito da União prevalece incondicionalmente sobre as ordens jurídicas internas tem sido aceite pacificamente por essa Europa fora.

O tema é antigo e o diálogo entre ordens constitucionais nacionais e europeia não se fez sempre tranquilamente, conhecendo vários episódios de tensão. O mais recente foi, aliás, protagonizado pelo Tribunal Constitucional alemão quando, no ano passado, se pronunciou sobre um programa de compra de activos do sector público adoptado pelo Banco Central Europeu. Também aí o tribunal de Karlsruhe pôs em causa a autoridade de um acórdão do TJUE e com ela a primazia absoluta e incondicional do direito da União sobre a Constituição alemã. E naturalmente que, apesar da reação vigorosa da Comissão Europeia de então, não se abriu nesse momento a porta à saída da Alemanha da União Europeia.

O tema ganha, é certo, outra importância no contexto em que surge a mais recente decisão polaca. É a primeira vez que um Chefe de Governo questiona directamente a validade dos Tratados europeus perante um tribunal constitucional. Um tribunal que é actualmente composto, na sua maioria, por juízes alegadamente simpatizantes do partido no poder. Juízes esses que, em termos aparentemente radicais (a versão final da decisão ainda não se encontra disponível à data da escrita deste artigo) declararam a inconstitucionalidade de disposições centrais do Tratado da União Europeia, na medida em que estas possam pôr em causa a soberania do Estado polaco para decidir acerca da organização interna do poder judiciário, que é matéria que, no entender daquele tribunal, escapa às competências da União.

Tudo isto revela o carácter explosivo do tema. Estão em causa, na verdade, as interferências do poder executivo nacional na independência do poder judicial, garantia fundamental de Estado de Direito. Problema que, na Polónia, assume natureza sistémica. É igualmente importante sublinhar que o acórdão agora proferido surge na sequência da condenação da Polónia pelo TJUE em virtude das regras aplicáveis à nomeação dos juízes do Supremo Tribunal polaco adoptadas nos últimos anos.

Esta não é, todavia, a única condenação polaca a este respeito. Em 2019, a Polónia foi condenada duas vezes por violação do direito da União, tendo o TJUE considerado que as regras relativas à aposentação dos magistrados judiciais adoptadas desde 2017 eram contrárias ao direito da União. Em julho deste ano, nova condenação, desta feita a dever-se ao novo regime disciplinar aplicável aos juízes polacos. Os receios com a violação sistemática da independência judicial na Polónia têm sido veiculados por diversas instituições.

Neste contexto, não é o conteúdo do mais recente acórdão do Tribunal Constitucional polaco que deve preocupar. Ele é, na realidade, apenas a face mais visível de uma violação sistémica dos princípios do Estado de Direito a que se assiste hoje na Polónia, e noutros países do leste europeu. E que não é novidade.

Esta verdadeira “crise do Estado de Direito” ocupa a agenda europeia há vários anos. Motivou, em 2017, uma acção musculada da Comissão contra a Polónia ainda antes de o Parlamento Europeu ter reagido contra a Hungria, em 2018. Pelo menos desde 2016, a Comissão Europeia iniciou um diálogo com a Polónia que, frustrado o seu objectivo, culminou na primeira activação do artigo 7.º do Tratado da União Europeia contra um Estado-Membro. Apesar disso, em virtude das exigentes maiorias e procedimentos em que assenta, o artigo 7.º não produziu até agora nenhum resultado palpável. A alternativa tem passado então pelas diversas acções por incumprimento intentadas pela Comissão junto do TJUE, às quais o Tribunal Constitucional polaco agora reage com firmeza.

É claro, em todo o caso, que sem prejuízo das dificuldades jurídico-políticas associadas a este processo, a União não pode tolerar no seu seio a existência de regimes que comprometam de forma flagrante os valores comuns em que assentam as suas fundações. A União Europeia não se baseia apenas numa comunhão de interesses. Funda-se numa comunhão de valores e princípios que justificam e legitimam o projecto europeu desde a sua criação.

Neste quadro, o que o acórdão do Tribunal Constitucional polaco hoje nos recorda não é tanto que o direito da União não se aplica sempre e em qualquer caso sobre o direito constitucional nacional. Recorda-nos, ao invés, que a deriva anti-democrática e iliberal a que hoje assistimos a leste precisa, mais do que nunca, de ser contida. Aqui, os tribunais não poderão fazer mais do que o seu papel. E na Polónia poderão, porventura, cada vez menos. A resposta tem de ser encontrada no quadro político. O não acesso, ou o acesso condicionado aos fundos do Mecanismo de Recuperação e Resiliência será uma arma importante neste combate (ainda que envolto ele próprio em alguma incerteza). Mas as necessidades imediatas do presente não devem fazer esquecer a necessidade de encontrar uma solução política de fundo que assegure a integridade da União, e a sua natureza fundamental enquanto União de Direito.

É comum dizer-se que o primado do direito da União constitui uma sua verdadeira “exigência existencial”: sem ele, a União não pode existir. Mas aquilo de que depende verdadeiramente a existência da União é, antes de mais, do primado do Estado de Direito. No fim do dia, é nessa vocação originária fundamental que se joga, antes de tudo, a legitimidade do projecto europeu.