Católico comprometido, jurista insigne, intelectual amável, educador dedicado, cultivador afável de amizades.
Trouxe do Sabugal, onde nasceu, em 1931, a solidez da terra e o anseio da palavra oceânica.
Em Coimbra, obteve, com brilhantismo, formação académica em direito, desenvolveu profundidade no ‘pensar com’ os outros, construiu amizades, e adquiriu o desejo de ensinar, conjugando, no singular, a cultura humanista cristã com a cultura jurídica, entretecendo finamente a justiça que confere força estruturante ao direito. Foi, desde 1948, dirigente do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) e seu Presidente em 1953-54, numa altura de consciencialização da necessidade de um instituto superior católico em Portugal, de reivindicação da sua importância social, contribuindo decisivamente para a modelação de um lastro cultural que permitiu a criação, em 1967, da Universidade Católica Portuguesa (UCP).
Depois da licenciatura, foi, primeiro, docente de direito na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, rumando depois para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde trabalhou com o Professor Inocêncio Galvão Teles e onde lhe foi confiada a regência de uma das turmas de Teoria Geral do Direito Civil. Afastado da docência após a Revolução de 25 de Abril de 1974, recolhe-se em Ciudad Rodrigo, Província de Salamanca, onde Mário Pinto, colega na Faculdade de Direito, em Coimbra, também colega na Faculdade de Economia, no Porto, o foi convidar para, em 1977, leccionar Introdução ao Estudo do Direito no recém-criado Curso de Direito na Faculdade de Ciências Humanas da UCP.
Convite aceite, Mário Bigotte Chorão regressa a Lisboa e, ao longo de mais de três décadas, fiel aos princípios e valores do humanismo cristão e em total dedicação à Universidade Católica Portuguesa e à sua identidade, sedimenta, em apurada investigação e ensino rigoroso, uma muito particular visão jusnaturalista do direito, de matriz neo-tomista. Uma sólida cultura histórica e filosófica leva-o ao realismo jurídico clássico, onde encontra os pilares de pensamento, que enriquece com uma forte inspiração personalista, desenvolvendo uma fina argumentação que lhe permite acolher as novas áreas ligadas aos direitos humanos, nomeadamente as da bioética, por onde palpitam muitos dos mais complexos e controversos temas jurídicos da actualidade.
E tudo conduzido por uma intransigente defesa da liberdade de educação em Portugal, iniciada longe no tempo, e presente também na sua acção como membro da Direcção do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Educação, do Conselho Nacional da Educação e do Conselho Superior da UCP.
As inúmeras gerações de juristas portugueses que o tiveram por mestre reconhecem na figura austera e afável de Mário Bigotte Chorão, e na sua obra escrita – com destaque para Introdução ao Estudo do Direito e para Pessoa Humana, Direito e Política – o peso decisivo que tiveram na sua formação académica e humana. Não admira que lhe pertença um lugar especial na Universidade Católica Portuguesa.
Director e colaborador das Enciclopédias Verbo e Pólis, bem como director-adjunto da Revista O Direito (Lisboa), foi participante regular nos colóquios do Institut International d’Études Européennes “António Rosmini”, em Bolzano, e de outros fora da intelectualidade jurídica, granjeou o respeito, a admiração e a amizade do círculo restrito dos filósofos do direito, nomeadamente italianos, espanhóis, brasileiros, que quiseram acompanhá-lo no colóquio internacional promovido pela UCP na sua jubilação (2006). Além de colegas portugueses, Miguel Ayuso, Vittorio Possenti, Danilo Castellano, Francisco Amaral marcaram presença e o seu testemunho oral foi recolhido em livro, organizado pelas docentes Maria João Fernandes e Joana Arnaut, publicado na “Revista Direito e Justiça”.
A jubilação não impediu Mário Bigotte Chorão de continuar a ensinar, desde logo no Instituto de Direito Canónico, nem de participar em colóquios, como, aconteceu em novembro de 2017, no Colóquio Francisco Suárez, nos 400 anos da sua morte, a convite do Instituto de Estudos Políticos, e muito menos de cultivar, com esmero e delicadeza, as muitas, muitas amizades que foi construindo ao longo dos anos.
A seu lado, esvoaçando alegria e jovialidade, Maria Beatriz, companheira de todos os momentos, atenta aos pormenores por onde beleza e compaixão irradiam, e Luís, o filho advogado, doutorado em História, cujo mérito profissional e presença carinhosa no seio familiar lhe avivavam a luz do olhar.
No dia 1 de junho, Mário Bigote Chorão partiu com a serenidade com que sempre viveu, deixando-nos a firmeza das suas convicções, a força do seu pensamento jus-filosófico, a afabilidade do diálogo intelectual, a amabilidade do trato pessoal, a saudade.
Maria da Glória Garcia | Professora Catedrática da Faculdade de Direito da UCP, Reitora da Universidade (2012-2016)