Todos temos de pagar impostos. É o custo a pagar por uma sociedade civilizada e solidária. No entanto, estes não deverão coartar o potencial de iniciativa de um país.
Todos temos de pagar impostos. É o custo a pagar por uma sociedade civilizada e solidária. Os impostos não deverão, no entanto, coartar o potencial de iniciativa de um país, intrometer-se de forma abusiva na forma de operar das empresas e na ambição individual de empreender.
Já em 1642, o Padre António Vieira, no célebre sermão que pregou na igreja das Chagas, notou que “Pague Pedro o tributo sim, mas seja com tal suavidade, e com tão pouco dispêndio seu, que satisfazendo às obrigações de tributário, não perca os interesses de Pescador”. De forma hábil relembrou que “Deus tirou a costa de Adão, mas ele não o viu nem o sentiu, e, se o soube, foi por revelação”. Assim se desenhem os impostos, concluiu o sábio.
A atual proposta de Orçamento de Estado para 2025 propõe que se cobre no próximo ano perto de 65 mil milhões de euros em impostos. Sendo um valor ligeiramente inferior, em termos relativos quando tomado em consideração o PIB nacional projetado para 2025, ao cobrado em 2024, não deixa de representar um valor substancial para o bolso dos portugueses e para o bom funcionamento da economia portuguesa. Talvez por isso valha a pena refletirmos sobre a intenção recentemente anunciada pelo governo de investir na utilização de Inteligência Artificial (IA) na Autoridade Tributária.
O recurso à IA encerra múltiplas promessas de melhoramento da operação do sistema fiscal e do seu alinhamento com as necessidades dos contribuintes e do Estado. Sem pretensão de exaustividade, sublinharíamos as seguintes:
Serviços públicos mais céleres, aproximando a atividade do Estado ao tempo real em que opera o mercado;
Facilitação do cumprimento voluntário das obrigações tributárias por indivíduos e empresas;
Processos mais eficientes, libertando recursos do Estado e do setor privado para atividades de maior valor acrescentado;
Minimização da ocorrência de fenómenos de prescrição da obrigação tributária ou de caducidade do direito à liquidação, e otimização dos processos de controlo tributário, com repercussões positivas na eficiência da arrecadação e na justiça fiscal;
Otimização do processo de tratamento de dados recebidos de outros Estados, fortalecendo-se a justiça fiscal num contexto de transações e modelos de negócio crescentemente globais.
As promessas são múltiplas. Mas quais os riscos envolvidos e como lidar com os mesmos? A utilização da Inteligência Artificial no domínio tributário convoca um juízo de fino equilíbrio entre os interesses económicos e financeiros do Estado e os direitos, liberdades e garantias dos contribuintes.
Por exemplo, a necessidade de explicabilidade do ato tributário impõe restrições à aplicação da tecnologia pela Administração Tributária, sempre que não seja possível prever o desenlace decisório da máquina e o processo lógico-cognitivo que conduziu à fundamentação do seu ato.
Uma questão adicional que se coloca com particular acuidade é se será possível equacionar um procedimento tributário integralmente artificial, sem intervenção humana direta, baseado em atos puramente automáticos. Neste cenário, questões como a fundamentação dos atos tributários ou o apuramento de responsabilidade pela decisão, surgem como merecedores de uma aturada reflexão.
O princípio da igualdade é também chamado à colação na construção dos algoritmos e dos seus pressupostos. A programação deverá assegurar a ausência de patologias ou erros técnicos no algoritmo que resultem em ações discriminatórias, privilegiando-se ou penalizando-se certos contribuintes em relação a outros.
Por último, a criação de perfis de risco pela Administração Tributária, com base no património informacional facultado pelos obrigados tributários e por terceiros, convoca preocupações particularmente sérias.
Uma primeira, relativa à utilização dos dados utilizados para a criação desses perfis, e a forma como estes são tratados e cruzados para gerarem um certo perfil comportamental com relevo tributário. Uma segunda, relativa aos atos ou procedimentos que a Administração Tributária adota com base nesses perfis. Ambas as preocupações merecem ponderação sempre que se equacione o recurso à inteligência artificial para a construção de perfis de risco e à sua aplicação no campo tributário.
Em suma, as promessas são múltiplas e justificam, certamente, que se avance rumo ao futuro. Mas os riscos envolvidos exigem um debate aprofundado e transversal.
Miguel Correia, Professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa