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OPINIÃO | Quem tem medo dos direitos dos animais?

Wednesday, March 8, 2023 - 12:43
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EXPRESSO

A defesa dos direitos dos animais não nos desumaniza. Pelo contrário, torna claro aos nossos olhos que há um valor inerente a todos os sujeitos que partilham o espaço deste planeta, que deve ser incondicionalmente respeitado. E que este valor inerente ao qual devemos reconhecimento deriva daquilo que temos em comum: a vida.

Parece existir medo no que toca ao reconhecimento constitucional dos direitos dos animais. Medo este consubstanciado pela recusa do Tribunal Constitucional em reconhecer como conforme à Lei Fundamental o crime de maus-tratos a animais de companhia e também pela falta de consenso no que toca aos projetos de revisão constitucional apresentados no que toca a este problema.

Talvez este medo se explique, em parte, pela associação desta causa ao radicalismo de Peter Singer (ou dos seus ecos) e do utilitarismo que defende. Sobretudo, quando este se permite fazer juízos consequencialistas, que acabam por desvalorizar, em certas circunstâncias específicas, a vida humana perante a dos animais, em nome do combate ao especismo.

Claro que o Peter Singer não é culpado de tudo e, muito menos, da indiferença do nosso Tribunal Constitucional à evolução do nosso ordenamento jurídico que já oferece há muito (com reforços recentes) proteção aos animais. Certamente também está isento de culpa de uma argumentação jurídica utilizada por este mesmo órgão jurisdicional, baseada num entendimento fechado de constituição formal e cego à abertura a direitos e interesses não constitucionalmente previstos, expressamente prevista no artigo 16.º da Lei Fundamental.

Esta reticência em relação aos direitos dos animais, que ainda hoje é partilhada por muitos, tem raízes mais profundas.

Culturalmente, no mundo ocidental, funda-se desde logo no livro dos Génesis, na passagem que diz: “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem na terra” (Gn 2, 28). E, em última análise, alimenta-se da convicção de que só os seres humanos têm valor, em grande medida, por serem os únicos capazes de articular o conceito de direitos e deveres.

Juridicamente, também não é alheia aos autores contratualistas que nos apresentaram uma conceção de direitos fundamentais baseada numa lógica de reciprocidade. Ou seja, reservando-os para os sujeitos que pela sua racionalidade conseguem cooperar numa sociedade.

Receios e reticências à parte, a verdade é que quanto mais se sabe sobre os animais e mais se pensa sobre o reconhecimento dos seus direitos, mais se chega à conclusão de que este tema constitui um belíssimo complemento para a nossa reflexão sobre os nossos próprios direitos, ao trazer para a ribalta aquilo que são as questões fundacionais do nosso Direito e daquilo que deve merecer tutela jurídica.

Como nos já ensinava Tom Regan na década de 80 e hoje é plenamente afirmado pela ideia de Ecologia Integral defendida pela Papa Francisco, a defesa dos direitos dos animais não nos desumaniza. Pelo contrário, torna claro aos nossos olhos que há um valor inerente a todos os sujeitos que partilham o espaço deste planeta, que deve ser incondicionalmente respeitado. E que este valor inerente ao qual devemos reconhecimento deriva daquilo que temos em comum: a Vida.

Nestes termos, o Direito deixa de ser contruído em torno de uma ideia de reciprocidade. Passa, portanto, a oferecer proteção direta a todos os que, à luz dessa conceção de reciprocidade, apenas eram protegidos por indiretamente interessarem a alguém (em concreto, no caso dos animais, por serem ou não da propriedade de alguém ou por pertencerem a uma espécie protegida).

O reconhecimento de direitos dos animais, ao contrário do que podemos pensar, não implica comprometer o desenvolvimento dos nossos direitos, nem defender radicalmente que os animais merecem os mesmos cuidados dos humanos, porque as preocupações com eles são necessariamente diferentes e não podem deixar de se ligar com a sua natureza. Significa, isso sim, reconhecer que todas as vidas (desde a humana à animal) – mais ou menos autónomas, mais ou menos inteligentes – têm uma dignidade que não pode deixar de ser reconhecida e tutelada pelo Direito.

Reconhecer os direitos dos animais, significa, portanto, um reforço dos nossos deveres de cuidado para com os outros, independentemente da situação em que estes se encontrem.

Este dever de cuidado que daqui resulta não pode deixar de nos interpelar também para a consideração dos problemas dos seres humanos dependentes: não nascidos, recém-nascidos, deficientes profundos, dementes, idosos senis… Além de nos interpelar evidentemente para o problema dos seres não-humanos, sobretudo, quando interferimos diretamente nas suas vidas e quando os subordinamos tão totalmente que lhes retiramos independência e capacidade de condução livre das suas vidas.

É preciso, portanto, mudar as crenças enraizadas na sociedade, para que o reconhecimento da tutela constitucional dos animais possa ser transformador.

Será que a revisão constitucional em curso pode trazer mudanças quanto a este reconhecimento?

Antes de responder a esta questão, noto que neste momento apenas o BE, o PS e o PAN convergem, por via dos projetos de revisão constitucional apresentados, no reconhecimento do bem-estar animal e isso não ainda é suficiente para a aprovação de uma revisão constitucional neste domínio, que carece do voto favorável de 154 deputados. Falta, portanto, convencer o PSD da bondade deste entendimento.

Se pudesse antecipar o consenso possível, apostaria as minhas fichas em que a referência ao bem-estar animal seria feita através da revisão do artigo 66.º da Constituição, relativo ao ambiente. Não me parece que haja consenso suficiente para a alteração do artigo 1.º da Lei Fundamental e para consagração do respeito pelos animais ao lado da dignidade humana.

Não sou ingénua ao ponto de pensar que a mudança da Constituição implicará assumir até às últimas consequências o reconhecimento de um valor inerente a todas as vidas humanas e não humanas. Sobretudo, na parte do abolicionismo de todo o experimentalismo animal e do abolicionismo de toda a exploração comercial ou agrícola dos animais.

Tenho para mim, que a mudança na Constituição – a acontecer neste ponto – não passará, para já, do efeito da criação do fundamento necessário – e que o Tribunal Constitucional reclama – para um maior cuidado para com os animais de companhia, acompanhando aquele que é já o espírito do legislador ordinário.

É um passo muito curto, é certo. Mas enquanto este reconhecimento não servir para assumirmos uma vida de acordo com os mais elevados padrões éticos, que sirva, pelo menos, para nos interpelar a um reforço da proteção aos mais vulneráveis e da tutela correspondente ao valor da sua vida.