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PENSAR DIREITO | A lei-travão, o Orçamento e as bolas de Berlim

Sexta-feira, Junho 26, 2020 - 09:03
Publicação
O Jornal Económico

Sem travão, os Deputados poderiam preocupar-se apenas com o aumento das despesas, enquanto o Governo teria de pensar também onde é que iria buscar mais receitas para manter o equilíbrio orçamental.

Quem diria que a pandemia, depois de nos trazer à memória a telescola, de quem já ninguém se lembrava, nos trouxe também à memória a existência da lei-travão, de quem, pelos vistos, ainda menos gente se lembrava.

Para modernizar ambas as relíquias, num dia o Professor de Direito Constitucional Marcelo Rebelo de Sousa foi dar uma aula síncrona na telescola e logo no outro dia o Governo decidiu dar uma aula assíncrona, sobre Direito Constitucional, no Parlamento. Esqueceu-se, porém, o Governo de que os alunos não gostam do chamado “estudo autónomo” e, por isso mesmo, não é de estranhar o clamor dos Deputados sobre o facto de a matéria da lei-travão não ter sido dada pelo Zoom, antes tendo sido apenas distribuída bibliografia sobre o tema.

Como normalmente acontece nos WhatsApp group dos pais dos alunos, a propósito de assuntos de escola, a intensidade do descontentamento foi galopante e às tantas já se dizia que o Governo não podia dar ordens aos Deputados sobre o que é que estes podiam ou não aprovar. Ainda por cima para impedir os Deputados de aumentarem despesas ou diminuírem receitas, que são logo as coisas que os Deputados da oposição mais gostam de fazer.

Os meus filhos, por exemplo, sempre na oposição, fariam greve de fome se eu lhes dissesse que ia pôr um travão ao ímpeto que têm de quererem sempre aprovar aumentos de despesas, sobretudo com brinquedos e guloseimas, querendo, ao mesmo tempo, diminuir as receitas familiares, já que, por eles, eu não ia sequer trabalhar, para estar sempre disponível para ir comprar brinquedos e guloseimas a toda a hora.

Tudo seria mais fácil em minha casa se eu tivesse uma Constituição caseira, que tivesse um artigo 167.º, onde estivesse escrito, desde 1976, e ainda por cima aprovado por unanimidade de todos os Deputados, que “Os Deputados […] não podem apresentar […] propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.

Esta norma-travão não se aplica quando os Deputados estão a aprovar o Orçamento inicial para o ano seguinte, pois, nesse caso, as propostas dos Deputados não aumentam nem diminuem as receitas ou despesas “previstas no Orçamento”, pois ainda não há Orçamento. Já no caso das alterações ao Orçamento aprovado, como é agora o caso, esta norma-travão, prevista na Constituição já se aplica, para evitar que os Deputados aprovem propostas que aumentem as despesas ou que diminuam as receitas previstas no Orçamento, com isso desequilibrando o Orçamento vigente. É mesmo nestes casos de alteração do Orçamento que a norma-travão é mais precisa. É que, sem travão, enquanto os Deputados se poderiam preocupar apenas com o aumento das despesas, o Governo teria de pensar também onde é que iria buscar mais receitas para manter o equilíbrio orçamental.

Conheço bem esta lengalenga. Em minha casa, antes de irmos para a praia, aprovamos sempre um orçamento. Depois de muita discussão, nas receitas inscrevemos cinco euros e nas despesas propomos comprar cinco bolas de Berlim. Quando a manhã ainda nem vai a meio e o senhor das bolas ainda não chegou, já está a criançada a exigir um orçamento retificativo, para poderem comprar também cinco gelados. E onde está o dinheiro para esses cinco gelados, pergunto eu, armado em ministro das Finanças de calções? Não sei, dizem eles. Nem nos interessa, sussurram.

Mais tarde, quando concluímos que o preço das bolas de Berlim está mais caro, é preciso alterar o orçamento (ou seja, tenho de ir a casa buscar mais moedas) para permitir continuar a comprar uma bola de Berlim para cada um, que os meninos não aceitam políticas de austeridade. É nessa altura que lhes distribuo um parecer a explicar que não podemos estar, no meio da praia, a querer mudar as regras do jogo e que só tenho moedas extra que permitem o valor necessário para comprar as bolas que tínhamos combinado, mas que não dá para comprar uma bola e um gelado para cada um.

Seguem-se as birras, as reclamações e os protestos. Ah, que bom seria se os meus filhos fossem crescidos como os Deputados e soubessem o que é uma Constituição, o que é um Orçamento e que para aumentar as despesas com bolas de Berlim é preciso ter receitas para as poder pagar!

Tiago Duarte, Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica Portuguesa