Apesar do elevadíssimo estádio de evolução tecnológica que atingimos, continuamos a ter de preencher uma declaração de IRS…
Em 1989, a sonda Galileu foi enviada para o espaço com o objetivo de estudar o planeta Júpiter e outros corpos celestes do sistema solar. No mesmo ano, entrou em vigor o Código do IRS.
Desde 1989, muitas outras sondas foram enviadas para o espaço. Algumas percorreram milhões de quilómetros, tiraram fotografias, captaram sons e até pousaram e analisaram áreas significativas da superfície dos astros. Na década de 90 do século passado, conseguimos, até, clonar um mamífero. Contudo, apesar do elevadíssimo estádio de evolução tecnológica que atingimos, continuamos a ter de preencher uma declaração de IRS…
Verdade seja dita, muito caminho se fez desde 1989. As declarações são hoje mais intuitivas, já assumem vários valores e algumas são mesmo automáticas. Em certos casos, não só o preenchimento da declaração é simples e rápido, como será um autêntico prazer, já que muitos contribuintes têm direito a um reembolso. Mas, em muitíssimos outros casos, o processo continua a ser penoso, implicando horas de desespero a preencher os vários e confusos anexos, quadros e linhas da declaração com informação a que, na maioria das vezes, a administração fiscal já teve acesso.
Como consultor fiscal, aguardo anualmente com carinho os últimos dias do prazo para apresentação da declaração de IRS. Se, para a maioria das pessoas, o momento de reunião social por excelência ocorre no Natal ou na passagem de ano, para mim é no fim do prazo do IRS, quando recebo telefonemas de amigos com quem passo anos sem falar.
É esta a altura em que me ligam a perguntar, por exemplo, se eu sei qual o quadro que se deve preencher para deduzir as despesas do cadeirão reclinável com vibração e suporte para duas latas de cerveja comprado por causa das dores de costas (e só ocasionalmente utilizado para ver a bola)! Mas é, também, o momento em que me ligam a perguntar por que razão os milhares de euros de despesas com dependentes não aparecem na declaração ou porque não está o reinvestimento das mais-valias a ser aceite.
Sucede que, relativamente a muitos contribuintes, existem passos necessários a uma correta liquidação de IRS (e muitas vezes esquecidos) que têm de ser dados meses ou anos antes da submissão da declaração, tais como a confirmação dos dependentes, da empresarialidade das faturas ou a opção pelo reinvestimento no caso de algumas mais-valias. Este é, de facto, um tema muito sério, não só pelos elevados custos de cumprimento e incumprimento das obrigações fiscais – como acontece com outros impostos –, mas também por alguma falta de literacia fiscal que ainda se faz sentir.
Isto não é propriamente uma crítica ao Governo ou à administração fiscal, já que o mesmo se passa um pouco por todo o mundo. É mais uma reflexão sobre a evolução e sobre o estado da humanidade. Parece que estamos a viver numa espécie de Homem que Mordeu o Cão Fiscal. Conseguimos meter sondas no espaço e clonar a ovelha Dolly, o fisco tem acesso a informação sobre todos os aspetos da nossa vida, mas continuamos a ter de apresentar uma declaração de IRS?!
Leonardo Marques dos Santos, Professor de Direito Fiscal e Direito Fiscal Internacional na Universidade Católica Portuguesa