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OPINIÃO | Substituição do IVA Zero chegará mesmo a quem mais precisa?

Thursday, October 12, 2023 - 10:58
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EXPRESSO

O fim do IVA Zero parte do princípio de que as pessoas, quando se encontram numa situação de pobreza, recorrem necessariamente à Segurança Social e aos seus subsídios (e que têm sempre resposta positiva em relação à sua pretensão de auxílio). Mas isso não é necessariamente verdade.
 

OE - Expresso - MOM

Nos termos da proposta de OE para 2024, o fim do IVA zero será substituído pela “canalização dos apoios no domínio alimentar para as famílias mais carenciadas (…) pelo reforço das prestações sociais” (como se lê no Relatório que acompanha a proposta de OE 2024), nomeadamente através do reforço do abono de família, do Complemento Solidário do Idoso, do Rendimento Social de Inserção e do Complemento de Prestação Social para a Inclusão (como resulta deste artigo do Expresso).

Em termos teóricos, a medida parece justa. Com efeito, perante a escassez de recursos, faz sentido apostar numa prioridade aos mais pobres em detrimento de uma política generalizada de apoios.

No entanto, a medida do fim do IVA zero, tal como está desenhada, suscita-me algumas preocupações no plano prático. Ela parte do princípio de que as pessoas quando se encontram numa situação de pobreza recorrem necessariamente à Segurança Social e aos seus subsídios (e que têm sempre resposta positiva em relação à sua pretensão de auxílio). Mas isso não é necessariamente verdade.

Em Portugal não temos estudos sobre a percentagem de não recurso às prestações sociais. Mas em França, no Reino Unido e na Alemanha o tema tem merecido atenção. No Reino Unido, este dado é fornecido de forma centralizada. Aí, o não-recurso é um fenómeno tão conhecido que até está retratado no filme de ficção “I, Daniel Blake”.

Na Alemanha, por exemplo, “a questão da não utilização está inscrita desde o início no debate sobre a «pobreza oculta» (verdeckte armur), por vezes chamada "pobreza na sombra" (dunkelziffer der armut). Este conceito, que existe há muito tempo na Alemanha, refere-se a agregados familiares que não são visíveis nas estatísticas federais relativas aos beneficiários de prestações sociais mínimas ou, por outras palavras, à pobreza que escapa aos sistemas de proteção social” (como defende Antoine Rode no paper de 2022, “La quantification du non-recours en Europe. Historique et principales «scènes de production» des mesures réalisées dans 5 pays européens”).

Em Portugal, chamamos-lhe “pobreza envergonhada”.

Desengane-se quem pense que as percentagens de não recurso não são elevadas. Elas podem ultrapassar os 50%, mesmo nos casos de prestações mínimas, como demonstra o estudo “Quantifier le non-recours aux minima sociaux en Europe”, também de 2022.

A invisibilidade destes agregados familiares pobres deve-se em grande parte à complexidade no acesso à Segurança Social. Ao invés de oferecer um sistema simples de apoios sociais, a Segurança Social transformou-se num caleidoscópio de pensões diversas. Se de acordo com a ideia original de Beveridge, o Estado deveria proporcionar um mínimo nacional calculado de acordo com os custos de alimentação, combustível ou o necessário para ter luz (se bem que deixando espaço para encorajar a ação individual no sentido providenciar mais e melhor à respetiva família), hoje a Segurança Social desmultiplica-se em inúmeras pensões e apoios. Para aceder a estes é preciso, não raramente, conhecimento especializado.

A própria desmaterialização da Segurança Social compromete a possibilidade de acesso a informação (tantas vezes, apenas disponível online). Com efeito, o acesso à rede é um problema para algumas pessoas, sobretudo as mais idosas, nomeadamente aquelas que não têm acesso a computador ou são de alguma forma infoexcluídas.

Outras causas concorrem para esta situação. Nomeadamente, o carácter invasivo de muitas ajudas e o medo da estigmatização. Recorde-se exemplificativamente a este respeito as normas da Segurança Social que obrigam a que o acesso às prestações sociais mínimas apenas se faça mediante a autorização a esta para aceder a todas as informações relevantes para aferição da situação socioeconómica.

A vergonha e o sentido de derrota (bem retratados no segundo episódio do documentário da RTP Pobreza Zero – O Futuro a construir) são também fatores que pesam na decisão de não recurso à Segurança Social.

Algumas reformas levadas a cabo no Reino Unido e na Alemanha, no que toca às prestações sociais, procuraram justamente fazer face às críticas sobre a elevada taxa de não-recurso às prestações sociais. No Reino Unido, em 2013 o sistema da Segurança Social foi simplificado através da criação de uma nova prestação – o Universal Credit (UC) – com o objetivo de fundir e substituir seis apoios sociais existentes, correspondendo a cerca de 60% do envelope financeiro das principais prestações sociais. Também na Alemanha, um dos intuitos da reforma Hartz IV de 2005 foi o de fazer face aos elevados níveis de não-recurso às prestações sociais.

Perante estes dados e perante a falta de manifestação de preocupação em Portugal quanto a este tema, questiono-me se a substituição do IVA Zero, tal como está desenhada, será suficiente para chegar realmente a quem mais precisa, sobretudo tendo em conta que o acesso à alimentação é um direito fundamental (com reconhecimento expresso e inequívoco no artigo 11.º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais), ao qual o Estado deve corresponder sem deixar ninguém para trás.

Prof.ª Maria d'Oliveira Martins

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